sexta-feira, 4 de março de 2011

| A INTEGRA DA LIMINAR | RODEIOS EM BARRETOS | PEA – PROJETO ESPERANÇA ANIMAL |


| FONTE | STF | 04/03/2011  Publicação, DJE nº 43, divulgado em 03/03/2011 | Despacho |

Decisão: Trata-se de pedido de liminar em reclamação constitucional ajuizada por Projeto Esperança Animal (PEA) contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo na apelação cível 994.09.335664-7.

O acórdão impugnado julgou procedente ação movida em face do ora reclamante pela associação civil Os Independentes, entidade que organiza e promove rodeio em Barretos, estado de São Paulo.

Segundo o reclamante, o objetivo da ação em referência foi silenciar denúncia de maus tratos de animais em rodeios promovida pelo reclamante por meio de seu sítio na rede mundial de computadores (www.pea.org.br).

Os pedidos acolhidos pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo foram assim deduzidos na inicial daquela ação:

“a) seja vedado, sob pena de pagamento de multa diária não inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), que a Ré vincule, por qualquer meio, especialmente a Internet, o Clube Autor ou a Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos, com tortura ou maltrato de animais;

b) que seja a Ré condenada, ainda, a uma obrigação de fazer, qual seja, em toda em qualquer mensagem relacionada com a realização de Rodeio, haja expressa menção que na Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos não há maltrato aos animais e;

c) que seja a Ré, ainda, condenada a efetuar o pagamento de uma indenização a título de danos morais, haja vista os fatos ora tratados, que deverá ser objeto de arbitramento, consoante entendimento do C. Superior Tribunal de Justiça (...)” (fl. 13)

Esta reclamação pretende obter, no mérito, a cassação do acórdão reclamado por violação ao entendimento adotado por esta Corte na ADPF 130, rel. min. Carlos Britto, Pleno, DJe 06.11.2009, uma vez que a condenação proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo equivaleria a ordem de censura prévia.

O pedido de liminar está embasado no risco que a decisão reclamada oferece a toda coletividade ao cercear a liberdade de expressão.

Nesse sentido, o reclamante destaca que a condenação proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a impede de divulgar opinião contrária àquela que foi considerada correta no acórdão, o que em última instância significa que lhe foi imposto o dever de considerar como única opinião correta aquela que é do interesse da associação organizadora do evento em Barretos.

É o relatório.

Decido.

A polêmica tem origem na utilização do sedém, assim definido no acórdão reclamado:

“(...) instrumento que teria a função de pressionar a virilha, o saco escrotal, o pênis e o abdômen do animal, provocando dor e sofrimento e levando-o a pular e corcovar (sic)” (fl. 668)

De acordo com o acórdão impugnado, o reclamante expôs em seu sítio na rede mundial de computadores informações a respeito da utilização do referido instrumento em rodeios.

Depois de ter sido constatado o envio de emails a certos patrocinadores, os organizadores do rodeio interpretaram as informações divulgadas pelo reclamante como acusações formais àquele evento específico e, antevendo prejuízos comerciais decorrentes de eventual diminuição do público e do aporte publicitário, ajuizaram ação para impedir que o reclamante vinculasse a utilização do sedém ao rodeio realizado em Barretos.

Devo observar que nas peças juntadas pelo reclamante aparentemente não se lhe imputa a utilização de expressões ofensivas à honra ou à imagem das pessoas físicas ou jurídicas envolvidas no caso.

Houve, ao que parece, simples divulgação de opinião em sítio na internet.

A pretensão deduzida na inicial foi acolhida pelo acórdão reclamado. Leio o parágrafo que me parece resumir o voto condutor proferido no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (fl. 675):

“Não há liberdade de exprimir suas convicções quando essas manifestações ultrapassam o campo da legalidade e invadem esferas privadas dignas de tutela, como o patrimônio de quem organiza e realiza festas de peões, eventos que alimentam a economia de uma cidade, constituindo, a partir desse lado econômico relevante, uma espécie de orgulho municipal.”

Para chegar à conclusão expressa no parágrafo acima, o acórdão reclamado tomou como critério para aferição da licitude do discurso da reclamante o fato daquele discurso ser ou não verdadeiro.

E, como índice do conteúdo verdadeiro do discurso, o acórdão utilizou-se da necessidade de se demonstrar, de maneira inequívoca, que o sedém provoca danos à saúde dos animais utilizados no rodeio de Barretos.

As passagens do acórdão transcritas a seguir resumem as balizas que aplicou para chegar a um juízo sobre a opinião divulgada pelo reclamante na internet:

“Não se provou que, na Festa do Peão de Barretos, o sedém, artefato que faria o boi corcovear de dor, uma performance própria para a disputa de montadores, maltrata os animais ou sequer influencia na sua capacidade reprodutiva (machos). Não existe um elemento nos autos comprometendo a posição neutra dos organizadores do evento sobre utilização dos animais no rodeio (...)” (fl. 671)

“Não existem indícios que favoreçam a tese de presunção de atrocidades ou crueldades, porque o rodeio é naturalmente bruto e causa ferimentos nos animais e nos peões, tanto que, freqüentemente, são relatados acidentes fatais. (...) Não há como impedir isso, salvo se for demonstrada uma crueldade que repugna os instintos dos que possuem sensibilidade normal para com os direitos dos animais.”  (fl. 672)

“O contexto aproxima a situação do recorrente PEA a quem deve provar a verdade em litígio de delito de linguagem, valendo acrescentar que o exercício regular de um direito (art. 188, I, do CC), tese da defesa, exigia que se provasse a verdade da denúncia que colocou a Festa do Peão de Barretos no epicentro dos torturadores de animais, tal como mencionado no art. 333, II, do CPC.” (fl. 673-674)

Não me cabe, nesta decisão liminar, avaliar se houve ou não a correta aplicação das normas de direito probatório.

Observo, no entanto, que o acórdão pode ter se excedido ao exigir do reclamante que provasse a existência, na conduta por ele denunciada (utilização do sedém em animais de rodeio), de uma conclusão subjetiva que somente pode ser alcançada a partir de um julgamento ético (crueldade).

Em outras palavras: o acórdão pode ter exigido que se submetesse à prova uma simples opinião compartilhada pelo reclamante e pelos indivíduos que acessaram o sítio na internet.

Essa impressão parece ser confirmada por um deslize cometido no voto condutor.

Na fl. 675 a questão da utilização do sedém é introduzida sob o ângulo probatório:

“A questão do processo diz respeito à Festa do Peão de Barretos e, no caso, não se provou que o sedém que é manuseado no local (...)”

Noto, entretanto, que o período seguinte se inicia com uma admissão implícita de que não seria possível obter o resultado esperado sem a utilização do instrumento cuja utilização foi denunciada (itálico meu):

“embora possa provocar a ira que dá ares acrobáticos ao show de montaria, não machuca o animal ou lhe causa dano irreparável.”

O raciocínio é concluído com uma defesa da inexistência de crueldade na utilização do sedém:

“O artefato é empregado com cuidado e em região sensível do boi, sem que lhe possa afetar a higidez anatômica, de modo que é surreal pretender liberar o instrumento dos rodeios a pretexto de causar dor intensa e própria da desumanidade de quem o comete.”

Dito de outra maneira: a impressão que se tem ao ler o acórdão reclamado é que, muito embora o instrumento seja, sim, utilizado em qualquer rodeio, o reclamante foi proibido de dizer que é usado em Barretos.

E mais: o acórdão obrigou o reclamante a concluir, sem direito a réplica, que caso o instrumento viesse a ser utilizado em Barretos, sua utilização naquele local não seria cruel, uma vez que, réu em ação judicial, não foi capaz de provar a crueldade da prática.

Atento ao pedido aqui formulado, me parece que o acórdão viola uma das premissas consensuais que podem ser extraídas da decisão proferida na ADPF 130.

Salvo raríssimas exceções – penso, por exemplo, na proibição do discurso do ódio existente em várias democracias –, não cabe ao Estado, nem mesmo ao Judiciário, proibir ou regular opiniões.

O discurso opinativo, a crítica, não depende de que se demonstre previamente a sua verdade para que se ganhe o direito de veiculá-lo livremente.

No caso da opinião veiculada pelo reclamante (utilização do sedém é cruel), trata-se de juízo que tem fundamento ético, ligado a uma determinada opção de vida e a uma determinada forma de se relacionar com os animais, opinião que não é uníssona e nem de longe compartilhada por todos os cidadãos brasileiros.

Sua aceitabilidade, por assim dizer, sempre oscilará de acordo com o contexto social em que emitida, considerando-se principalmente a existência ou não de comunhão prévia de interesses.

A mera existência e circulação de uma opinião divergente sobre os rodeios não ofende os direitos de quem os organiza, patrocina ou freqüenta.

No caso concreto, inclusive, a caracterização dos ofendidos pela opinião do reclamante é por demais fluida. A se estender o raciocínio a outros âmbitos da vida social chegaríamos a conclusões absurdas: de repente, crer que o consumo de carne animal provoca males à saúde humana tornaria o vegetarianismo ilegal...

Há espaço suficiente para diferentes opiniões na esfera pública e é importante para a democracia brasileira que continue assim.

Em julgamento monocrático sujeito à confirmação do Plenário, parece-me que o acórdão reclamado proibiu que uma determinada opinião fosse veiculada e, ao fazê-lo, violou o entendimento exposto por esta Corte na ADPF 130.

Mais: ao proibir a divulgação de opinião, o acórdão evidentemente prejudica toda a coletividade, criando véu de silêncio sobre prática social cujo questionamento é legítimo (ver, em contexto assemelhado, utilizado aqui apenas como exemplo, o caso farra do boi: RE 153.531, rel. min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 13.03.1998).

A medida liminar justifica-se diante do dano difuso que a censura provoca.

Ante o exposto, defiro a liminar para suspender os efeitos do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos da apelação 994.09.335664-7.

Requisitem-se informações à autoridade reclamada, com urgência, inclusive via fax.
Intime-se o terceiro interessado Os Independentes no endereço fornecido pelo reclamante.

Publique-se. Int..

Brasília, 25 de fevereiro de 2011

Ministro Joaquim Barbosa
Relator
Documento assinado digitalmente

Um comentário:

José Franson disse...

Justiça se fez. Bravo ministro Joaquim Barbosa.

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